Esse artigo traz assuntos relacionados à igualdade de gênero que devem ser endereçados na opinião de Sanda Ojiambo, Assistente do Secretário-Geral e CEO do Pacto Global da ONU
No universo de startups há uma máxima que é “o feito é melhor do que o perfeito”. Para o contexto de inovação, ela faz todo sentido: no início, os fundadores dessas empresas têm de aceitar, muitas vezes, que seus produtos e serviços não são perfeitos. Pelo contrário, certamente têm falhas e precisarão ainda ser aperfeiçoados a partir de feedbacks e aprendizados.
Recentemente, essa frase me veio à cabeça em um contexto um pouco diferente. Ao fazer um balanço de 2022, percebi que o ano foi bom para a agenda de gênero no Brasil. Mais empresas se engajaram na contratação de mulheres; mais vagas afirmativas foram abertas para contratar negras; a diversidade em conselhos de administração avançou; os eventos corporativos estavam menos desequilibrados (infelizmente, ainda longe de 50/50 entre homens e mulheres); tivemos também capas de revistas, reportagens de jornais e campanhas publicitárias com maior diversidade; metas de igualdade de gênero foram colocadas inclusive como condição para empresas pegarem financiamento no mercado de capitais… enfim
Não dá para negar que houve uma melhora, ainda que em ritmo menor do que o necessário. Mas, em 2023, essa agenda precisa se consolidar e acelerar. Não há mais espaço hoje para os não-convencidos sobre a importância de ter mais mulheres nas empresas, governos, cultura e ocupando outros espaços.
E aí entra a frase cita no início do texto: se formos esperar ter o melhor programa de inclusão, o melhor projeto de diversidade, a fórmula perfeita para atrair talentos, sempre estaremos em um ritmo mais lento do que o necessário. É melhor o feito do que o perfeito. Seja pelo reconhecimento de que é uma estratégia ganha-ganha (o ideal, claro); seja pela vergonha de remar contra a maré; seja pela pressão de clientes e stakeholders; ou ainda pelo entendimento sobre a necessidade de reparação social e cultural … a agenda precisa avançar.
Nessa discussão, para 2023, há três tópicos em que, para mim, ainda estamos muito para trás e precisamos endereçar com mais força de vontade:
- Aumentar o número de mulheres em carreiras de Exatas, Ciências e Tecnologia.
No Brasil, elas representam apenas 26% dos profissionais atuantes nesses setores. O dado é de 2021 e o levantamento, financiado pelo International Development Research Centre, foi coordenado por Cecília Machado, da Escola Brasileira de Economia e Finanças, e Laísa Rachter, do Instituto Brasileiro de Economia.
Outro estudo mostra que só 5% das startups brasileiras têm mulheres como fundadoras, segundo o Female Founders Report, da Distrito. É este também o percentual de liderança feminina entre as 100 startups mais relevantes do mercado nacional (Distrito).
- Conversarmos sobre os dilemas e necessidades em torno do tema maternidade, para que mulheres se sintam mais confortáveis para trabalhar e crescer profissionalmente.
Segundo o IBGE, apenas 54,6% das mulheres com filhos pequenos estavam empregadas em 2021, contra 89,2% de homens na mesma situação. Muitas mulheres acabam abrindo mão de seus empregos para se dedicar à criação dos filhos e ainda sofrem discriminação de gênero quando querem retomar ao mercado de trabalho, tanto em processos seletivos como no dia-a-dia das empresas.
Outra pesquisa, de 2019, da revista Crescer, aponta que 94% das mulheres sentem dificuldade para conciliar a carreira com a maternidade. Entre os principais obstáculos estão o aumento da pressão para que ela se prove continuamente no trabalho, políticas corporativas não pensadas para as mães e falta de flexibilidade. Das respondentes, 64% disseram ter tido a carreira prejudicada pela maternidade, seja porque tiveram de recusar projetos mais ambiciosos ou promoções para terem tempo para o filho, seja porque deixaram de ser promovidas por serem mães.
- Implementar políticas para equidade e igualdade nas remunerações, tanto de funcionárias quanto de fornecedoras PJs.
A remuneração da mulher corresponde a 80% do que o homem ganha para desempenhar as mesmas funções, segundo dados do IBGE. Os dados se referem a trabalhadores com o mesmo perfil de escolaridade e idade, e na mesma categoria de ocupação. Mas o quadro piora quando olhamos o recorte racial: segundo estudo da Associação Pacto de Promoção da Equidade Racial a partir da análise de informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) o trabalho da mulher negra representa menos da metade dos ganhos dos homens brancos. O rendimento médio do trabalho em 2022 foi de R$ 3.574 entre os homens brancos mais pobres, enquanto as mulheres negras não receberam mais do que R$ 1.771.
Em 2021, o projeto de lei n° 130, de 2011, que prevê multa para empresas que pagarem salários diferentes para homens e mulheres que exerçam a mesma função, foi vetado pelo então presidente Jair Bolsonaro. Desde então, nada andou.
Para ajudar a dar uma luz sobre essas três frentes, eu conversei no fim do ano passado com a queniana Sanda Ojiambo, presidente do Pacto Global da ONU, unidade das Nações Unidas que dialoga com empresas. Veja os principais trechos da minha conversa com a Sanda e o que ela acredita que é preciso fazer nessas três frentes.
Mulheres em STEM
“O número de mulheres em áreas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática) até vem crescendo ao longo do tempo, com mais empresas concentrando esforços para aumentar a participação feminina via anúncio de vagas e programas de mentorias. Mas, globalmente, ainda é baixo, tanto em cursos universitários quanto em carreiras.
A solução, a meu ver, começa na família, no nível de comunidade, porque, em muitos lugares, as meninas não são encorajadas a seguir carreiras STEM. Em certas culturas, essas disciplinas são vistas como difíceis, e que não são para mulheres. As meninas simplesmente não são incentivadas a ir à escola ou cumprir esse direito de escolher a universidade. E isso também cria uma grande barreira para a participação das mulheres nessas carreiras. Parte da solução, então, é que haja um sistema de orientação, apoio e incentivo do governo e da sociedade para que jovens possam trilhar esse caminho. As referências — outras mulheres com quem essas meninas se identifiquem em áreas STEM — também devem encorajar outras mulheres e ser um modelo positivo na sociedade.
Os locais de trabalho têm um papel fundamental no encorajamento de mulheres no começo de carreira. Em muitas situações, porém, não é só a questão de abrir vagas para mulheres, mas ajudá-las a entrar na faculdade, com bolsas de estudo, por exemplo. Conheço algumas companhias que vão atrás das jovens no nível do ensino médio para incentivar seus estudos em STEM, fornecendo apoio na universidade e estágio logo cedo para que essas meninas e mulheres possam entender como funciona o ambiente corporativo. Realmente, exigirá muito esforço extra, mas não é impossível.“
Maternidade
“Gostaria que o que vimos durante a pandemia de covid-19 sirva de aprendizado para todos. Com o fato de termos que ficar em casa, muitos perceberam a carga que uma mulher carrega como cuidadora principal da casa, administrando as atividades das crianças, as tarefas domésticas, cozinhando e limpando muitas vezes sem ajuda. As mulheres sempre realizaram o turno duplo, enquanto os homens saem para trabalhar. A maternidade, claro, é um período alegre, mas nem sempre é fácil de equilibrar a dupla jornada de trabalho e casa.
Tanto a licença maternidade quanto a paternidade são muito importantes para dar aos pais a oportunidade de cuidar de um recém-nascido. Algumas empresas mais progressistas membros do Pacto Global fornecem, adicionalmente, creche ou possibilidade de levar o filho ao trabalho, por exemplo; isso dá uma sensação de satisfação mental e bem-estar. Outras permitem horários flexíveis. Esses benefícios são importantes porque ajudam a apoiar as mulheres durante esse período importante de suas vidas. As empresas precisam entender como ajudá-las. Nem sempre é preciso algo muito sofisticado.”
Equidade salarial
“É muito estranho descobrir que um homem é pago de forma diferente, mas fazendo as mesmas tarefas. Isso é pura discriminação; não há outra maneira de descrever a situação. Muitas vezes, quando as pessoas discutem gênero, elas simplesmente olham para a meta 50/50, 50% homem e 50% mulher. Mas você realmente precisa aprofundar uma camada e entender se as mulheres realmente têm as mesmas oportunidades iguais no local de trabalho e a diferença salarial é, certamente, um desses pontos a serem observados.
Todas as organizações e seus líderes deveriam fazer uma análise adequada da escala salarial e garantir que as mulheres sejam igualmente compensadas porque é o justo. Mas, devido às muitas lacunas que existem, também é necessário fazer adaptações para as mulheres, principalmente quando são mães, como falamos antes. Ter horários de trabalho flexíveis para permitir que elas equilibrem a família, a vida doméstica e outras coisas é essencial para que elas consigam se manter e se desenvolver.
Outro benefício para progressão feminina é o treinamento. Em um primeiro momento as pessoas falam que todos têm acesso a treinamentos, mas, quando a maior parte da formação profissional de meio de carreira acontece à noite e/ou nos finais de semana, que acontece é que muitas não conseguem atender devido às responsabilidades domésticas ou familiares. Não é que elas não tenham acesso a oportunidades iguais, é que seu contexto, muitas vezes, não permite que elas as aproveitem. E isso precisa ser levado em consideração pelas políticas corporativas. As empresas precisam se certificar de que são sensíveis às necessidades das mulheres, especialmente as que estão em idade reprodutiva.
Só vamos aumentar o número de mulheres em cargos de liderança se abordarmos a questão estrutural e sistêmica, traçar caminhos para que elas possam ter acesso igual a treinamentos, mentorias, etc.”
Para quem se interessa pelo tema, o Pacto Global tem três programas de capacitação de empresas que atacam direta e indiretamente os desafios da igualdade de gênero: os movimentos Elas Lideram, Raça é Prioridade e Salário Digno, todos parte da Ambição 2030.
Fonte: Valor Investe