A escritora, jornalista, rapper e ativista moçambicana Énia Lipanga enxerga uma dolorosa semelhança entre Moçambique e Brasil: a persistência da violência contra as mulheres, especialmente nas áreas periféricas. Em seu país, essa realidade se agrava pela herança cultural e pela força de costumes que ainda reforçam a desigualdade entre homens e mulheres.
“Temos um ditado antigo que diz: ‘Um homem que não te bate não te ama’. Imagine o impacto disso em uma mulher que ouve essa frase da bisavó, da avó, da mãe… É natural que ela acabe reproduzindo. São normas nocivas que precisamos combater, preservando nossa cultura, mas sem ferir a dignidade humana”, afirmou Énia em entrevista à Agência Brasil.
Para a ativista, a falta de escolarização em zonas rurais reforça esse ciclo de submissão e silêncio. “As mulheres moçambicanas são muito inteligentes, guardiãs de saberes e tradições, mas muitas ainda não têm acesso à educação formal. E quando a cultura confunde violência com tradição, é preciso coragem para romper”, destaca.
Literatura como ponte e denúncia
Énia acredita que a literatura é um canal poderoso para revelar as dores e resistências femininas. Em suas obras, ela escreve sobre as “violências visíveis e invisíveis” — do assédio ao abandono, do corpo ao silenciamento. A autora encontra semelhanças entre os dois países também nas páginas de livros, como em O Crime do Cais do Valongo, da escritora carioca Eliane Alves, que conecta Moçambique ao Rio de Janeiro pela herança da escravidão.
“A literatura nos aproxima. Mesmo sem estar no Brasil, eu reconheço nos personagens brasileiros o rosto das mulheres moçambicanas”, conta.
A Roda Transatlântica
Essas reflexões ganham força no evento Roda Transatlântica – Mulher, Literatura e Violência, que ocorre nesta quarta-feira (8), às 19h, na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. O encontro reúne escritoras que transformam suas vivências em literatura e ação política. Ao lado de Énia Lipanga, participa Dani Balbi (PCdoB-RJ) — doutora em Ciências da Literatura, roteirista, crítica literária e primeira deputada estadual transexual do Rio.
A mediação será da pesquisadora Carla Santos, doutoranda em Literaturas Africanas pela USP e estudiosa das conexões entre o feminismo e as narrativas africanas.
O objetivo é construir um espaço de escuta e diálogo entre escritoras de diferentes países, reforçando redes de apoio e inclusão.
Vozes que transformam
Para Énia, o diálogo com o Brasil é um exercício de aprendizado mútuo. “Estar com Dani Balbi é uma oportunidade de troca. Somos vozes comprometidas em quebrar barreiras e transformar a dor em resistência. Quero que esse debate traga Moçambique ao centro das discussões e mostre como a literatura pode curar as feridas das mulheres”, afirmou.
Balbi, por sua vez, vê na arte um instrumento de conscientização. Em seu livro Mãe Preta Reincidente, a deputada aborda as violências que o Estado pratica contra mulheres no sistema penitenciário. “A arte desperta a consciência dos males que a violência provoca. É uma forma de libertar e transformar”, explicou.
A partir da escrita, essas mulheres constroem pontes sobre o Atlântico — entre Moçambique e Brasil —, unindo culturas, feridas e esperanças em uma mesma luta: a de garantir dignidade, voz e liberdade a todas as mulheres.