Aos 77 anos, a aposentada Cleonice Vera Cruz é uma das moradoras mais antigas da Vila da Barca, onde vive há quase seis décadas. O centenário bairro de Belém, às margens da baía do Guajará, no coração da cidade, é marcado pelas precárias casas de madeira erguidas sobre palafitas, por causa das subidas da maré. Foi ocupado por ribeirinhos ainda no início do século passado. Atualmente, é uma das maiores comunidades urbanas de palafitas da América Latina.

O cenário contrasta com os prédios de apartamentos mais luxuosos da capital paraense, bem próximos dali, na região das Docas, principal ponto turístico da cidade, que recebeu vultosos investimentos no contexto da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que termina nesta semana.
Notícias relacionadas:
- COP30: oceanos podem cortar 35% das emissões de CO₂ até 2050.
- Liderança jovem da COP quer justiça climática no centro da conferência.
- Indígenas sul-americanos se unem em Belém por territórios e direitos.
“Quando dá um vento, a casa sacode. Se passar uma pessoa aí do lado, a gente sente porque a casa balança”, conta Cleonice à Agência Brasil.
Em momentos de cheia do rio e, principalmente, de chuva, a apreensão é maior.
“Ontem [17] deu uma chuva, mas uma chuva valendo que molhou tudinho aqui. Agora, eu ainda estava enxugando, é tudo furado aqui”, relata, referindo-se às fendas entre madeiras que não evitam que uma chuva forte molhe o interior da casa.
O temor de Cleonice não é em vão. Na madrugada da última sexta-feira (14), uma casa da vila desabou. Quatro pessoas que moravam no imóvel, entre elas uma criança e uma pessoa com deficiência, conseguiram escapar sem ferimentos após ouvirem estalos na madeira, que alertaram para o colapso. Além da família desabrigada, outros moradores vizinhos tiveram as casas com estruturas comprometidas e precisaram do acolhimento dos demais moradores.
A tragédia na Vila da Barca aconteceu no mesmo dia em que a COP30 encerrava sua primeira semana discutindo soluções climáticas para o planeta e mostra que a crise ambiental é também uma crise habitacional e social, que atinge mais quem já vive à margem.
“A gente precisa defender o meio ambiente, mas está se falando bem pouco ou quase nada sobre o cuidado e a proteção de quem mora debaixo da copa das árvores. Nós somos milhares de brasileiros que moramos na Amazônia, que não tem saneamento básico ou tem de forma precária, que o sistema de abastecimento de água também é precário”, diz Gerson Siqueira, presidente da Associação de Moradores da Vila da Barca.
Para ele, fala-se em transição energética, mas não em cuidado com a população.
“A gente precisa pensar como é que essa população vai passar por esse processo? As discussões lá na Blue Zone [da COP30] falam de financiamento, mas e a moradia? Será que a questão ambiental não passar por moradia digna?”, questiona.
Racismo ambiental
Estudo da organização não governamental Habitat para a Humanidade Brasil, apresentado na última semana na COP30, revelou que 66,58% da população residente em áreas de risco é formada por negros. O levantamento cruzou informações sobre áreas de risco hidrológico e geológico com dados censitários de 129 cidades brasileiras. Mais de um terço (37,37%) desses domicílios são chefiados por mulheres, onde a renda média é de R$ 2.127 (55%), chegando a ser quase a metade em relação à média geral das cidades analisadas. Além disso, 20,29% dos domicílios sob risco se encontram sem esgoto e 2,41% sem coleta adequada de lixo.
Em todo o país, são cerca de 2,1 milhões de casas danificadas por desastres climáticos e 107 mil destruídas, entre 2013 e 2022, por eventos ambientais extremos, indica o levantamento.
“A conclusão permite evidenciar a questão do racismo ambiental. A maioria das pessoas que estão morando em área de risco é negra, de baixíssima renda, que chega a ser a metade da renda de quem vive em áreas que não são de risco nessas mesmas cidades. Mulheres chefe de domicílio também têm predominância bem importante, assim como pessoas que não sabem ler e nem escrever”, descreve Raquel Ludermir, gerente de incidência política da ONG Habitat Brasil.
A diarista Maria Isabel Cunha, conhecida na Vila da Barca como Bebel, materializa bem esse perfil socioeconômico mapeado na pesquisa da Habitat. Mãe solo de dois garotos, sendo um deles com deficiência (PCD), Bebel está atualmente desempregada e depende da pensão recebida pelo filho PCD para sustentar a casa, além das escassas faxinas em residências de família, em que costuma receber até R$ 50 pelo serviço. Bebel diz gostar de morar na vila e ressalta o espírito comunitário no bairro. Sente falta de contar com mais serviços públicos que possam garantir uma rede apoio no cuidado com o filho, como um clube público ou instituição educacional.
“O dinheiro que chega não dá para a gente ajeitar a casa para mim e meu filho mais novo. Seria bom ter um emprego fixo. Eu cheguei a mandar currículo para trabalhar de arrumadeira num hotel, mas não deu certo. Preciso de tempo para cuidar do meu filho, que é especial”, afirma.
Poucos moradores ali pareciam estar totalmente a par dos debates da COP30, que acontecem a menos de cinco quilômetros de distância, no Parque da Cidade. Para Bebel, as reformas de revitalização da zona mais turística de Belém, como os armazéns histórico e a Avenida das Docas, locais próximos da comunidade de palafitas, foi o que mais chamou a atenção. “Ficou bonito lá, né”, disse. Já Cleonice Vera Cruz, que acompanha tudo pela TV, se surpreendeu com a grande presença indígena na cidade. “Não sabia que tinha tantos indígenas”, brincou.
Resposta e adaptação
Na Vila da Barca, são cerca de 600 moradias de palafitas, onde vivem mais de mil famílias. O local fica no bairro do Telégrafo, que soma um total de 5 mil moradores – parte vive em construções de alvenaria, em áreas já aterradas e mais urbanizadas. No fim de julho, a empresa Águas do Pará, responsável pelo saneamento no estado, iniciou obras de instalação do sistema de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto, no valor de R$ 15 milhões. A primeira fase de abastecimento de água já foi concluída e agora mesmo as famílias que vivem nas casas de madeira têm seu hidrômetro individual. O valor da conta, que ainda não está sendo cobrada, de acordo com a associação de moradores, será de R$ 66,42, uma taxa social. A rede de esgoto deverá ser finalizada até abril do próximo ano.
A luta da comunidade de palafitas por dignidade passa pela garantia de permanência. “A gente está trazendo melhorias para a vila, a mitigação de um problema, mas a gente precisa dar uma destinação. Elas vão continuar ali, morando sobre palafitas, até quando? Até quando o Estado brasileiro vai permitir que essas famílias continuem morando assim? A gente espera que tenha um conjunto habitacional com moradia digna, com infraestrutura necessária, para que elas consigam desenvolver a vida delas aqui”, afirma Gerson Siqueira.
Apesar do drama social, a Vila das Barcas tem vida cultural vibrante, com tradicionais festas juninas, blocos carnavalescos e que recebe, todos os anos, a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré, durante o Círio de Nazaré, cuja devoção popular é um dos emblemas mais conhecidos do Pará.
A ONG Habitat para Humanidade Brasil chama a atenção para um dado ainda pouco debatido pelos países, que é a relação crise climática versus crise habitacional. Segundo outro relatório da entidade, publicado pela sua rede com atuação global, somente 8% das metas climáticas apresentadas voluntariamente por cada país, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês), tratam da questão urbana, favelas e comunidades, incluindo planos e financiamento adequados para lidar com a emergência climática que destrói e danifica moradias e infraestrutura, acentuando as crises habitacional e urbana.
“A gente defende muito a possibilidade de permanência dessas comunidades, mas com melhores condições de segurança, de habitabilidade, adaptabilidade também. Ou seja, fortalecer a resiliência dessas comunidades, que muitas vezes são confundidas com falsas soluções, porque algumas dessas políticas de adaptação climática têm justificado a remoção de comunidades inteiras, o que não é justo”, argumenta Raquel Ludermir.
Pedro Rafael Vilela – Enviado especial

