Mostra traz filmes que discutem negritude, gênero e sexualidade


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A mostra online Rastros da Experimentação Negra Contemporânea exibe 14 filmes de realizadores negros – entre longas, médias e curtas-metragens –, disponível de forma gratuita, para todo o Brasil, através da plataforma de streaming SPcine Play (spcineplay.com.br), após um breve cadastro.

Em comum a experimentação de vanguarda traz produções que trafegam com leveza por temáticas complexas como negritude, gênero e sexualidade.

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No catálogo há cinco produções internacionais. Em coprodução da Etiópia, Reino Unido e Somália, o filme Except This Time Nothing Returns From the Ashes, de Asmaa Jama e Gouled Ahmed, explora o significado da presença e da revisitação do passado familiar e social, através de um jogo de textura com diferentes câmeras e técnicas.

Já a coprodução da República Dominicana com os EUA The Ritual to Beauty, de Maria Marrone e Shenny De Los Angeles, discute o que é a beleza por meio de três gerações de mulheres dominicanas.

Há ainda três produções dos Estados Unidos, Sojourner, de Cauleen Smith, indicado ao Tiger Awards do Festival de Roterdã; Pilgrim, da mesma cineasta; além de Tygers, de Kevin Jerome Everson, sobre um treino de um time de futebol americano. 

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Eixo

O projeto curatorial, assinado pelo jornalista e professor Heitor Augusto, divide a mostra em quatro eixos temáticos: Movimento, Casa, Ritmo e Nossa Gente.

O eixo Movimento traz seis curta-metragens com diversas concepções de movimentação, refletindo sobre a liberdade e as limitações de movimento impostas pelo racismo e pela LGBTfobia:

  • Só que desta vez nada retorna das cinzas (2023, Reino Unido) de Asmaa Jama e Gouled Ahmed;
  • [in]Consciência (2018, Brasil) de Jéferson;
  • Por que não ensinaram as bixas pretas a amar? (2023, Brasil), de Juan Rodrigues;
  • Pilgrim (2017, EUA) de Cauleen Smith;
  • Sojourner (2018, EUA) também de Cauleen Smith; e
  • Tygers (2014, EUA) de Kevin Jerome Everson.

O eixo Casa dialoga, em cinco curtas-metragens, com os conceitos de morada, conforto e identidade: 

  • Entenda o processo colonial em 5 minutos (2019, Brasil) de Ana Julia Travia;
  • Cicatriz tatuada (2022, Brasil) de Eugênio Lima, Gabriela Miranda e Matheus Brant;
  • Morde e assopra (2020, Brasil) de Stanley Albano;
  • Rito de beleza (2020, EUA/República Dominicana) de Maria Marrone e Shenny De Los Angeles; e
  • Olhos de erê (2020, Brasil), de Luan Manzo.

 O eixo Ritmo apresenta duas obras que provocam reflexões a partir de elementos da montagem como a cadência, o andamento e o corte, despertando discussões sobre saúde mental e a experiência negra na diáspora:

  • As vezes que não estou lá (2021, Brasil) de Dandara de Morais; e
  • Pontes sobre abismos (2017, Brasil), de Aline Motta.

Por fim, o eixo Nossa Gente é representado pelo filme Sessão Bruta, de as talavistas e ela.ltda, que apresenta o estar em comunidade, enfocando vivências, estratégias e criação.

Curadoria

O projeto curatorial foi aprovado no edital de Seleção e Apoio de Propostas Curatoriais de Conteúdo Audiovisual para SPcine Play (2023), da SPcine. A Agência Brasil conversou com o curador sobre a importância de abordar os temas principais em uma plataforma pública e seu potencial para pessoas que lidam com dinâmicas próximas às dos realizadores ou às dos personagens: 

Agência Brasil: Como você vê a relação entre este conjunto de filmes e o impacto que eles podem ter para a população, principalmente para a população negra e periférica?
Heitor Augusto: O principal impacto, na verdade, são dois. Primeiro que esse conjunto de filmes e essa reunião de filmes sob o signo da experimentação e do sistema experimental permite às populações negras e populações negras e periféricas que elas possam sonhar, imaginar, para além da realidade que está imposta e tem sido imposta para essas pessoas desde muito tempo. E a segunda importância que eu destacaria desses filmes é como muitos deles permitem que justamente essa população tenha as suas questões validadas.

Agência Brasil: Nisso inclui-se tratar diretamente do problema, discutir o racismo de forma direta?
Heitor Augusto: A gente sabe como uma das estratégias do racismo é fazer com que as populações pretas e periféricas não possam dar nome às coisas tal como elas são. A gente sabe como o racismo é sempre diminuído, ou melhor, a violência do racismo é sempre diminuída, então esse conjunto de filmes, entre outras coisas, permite também que essa população possa ver as suas questões validadas por meio, especificamente, de alguns filmes. Se eu fosse destacar, chamaria atenção tanto para [in]Consciência quanto para Por que não ensinaram as bixas pretas a amar?, pela importância deles para que as populações negras e periféricas tenham suas questões validadas.

Agência Brasil: O gênero é elemento que atravessa parte dos filmes, se não todos. Como que esse recorte composto por ambos, gênero e raça, longe de se atrapalhar, causando ruído, se complementa e é importante para a experimentação e inovação nestes filmes?
Heitor Augusto: Bem, eu tenho a sensação de que por muito tempo os movimentos negros organizados, tanto no Brasil quanto em diferentes lugares do mundo, foram organizados a partir de um certo paradigma de que qualquer busca de atravessamento de outra identidade ou de demandas de outras identidades, tirariam a atenção ou enfraqueceriam a atenção das pautas. Isso é uma falácia, infelizmente, ela é uma falácia normativa, uma falácia patriarcal.
A gente pode ver, por exemplo, como um filme como Línguas Desatadas, de 1989, que não está na mostra, mas eu estou aqui trazendo para poder ilustrar o meu ponto, como esse filme inclusive endereça essa questão, um dos momentos ali, justamente chama essa conversa. Ocorre também com o filme do Marlon Hicks, chamado Preto é Preto não é.
Ambos os filmes, eles endereçam essa falácia, e é importante chamar isso tal como é. É importante dizer que se na luta antirracista um dos objetivos é equidade, um dos objetivos é a humanidade e a humanização de pessoas negras, a gente precisa começar a ampliar o nosso imaginário.

Agência Brasil: De que formas precisamos avançar nessa ampliação?
Heitor Augusto: Quando a gente fala da pessoa negra ao longo da história infelizmente imaginamos o homem cis hétero? Então é bastante imprescindível, primeiro politicamente, que nós ampliemos os nossos imaginários e que entendamos que sem a libertação de pessoas negras de diferentes matizes, de matizes de gênero, de matizes de sexualidade, a libertação negra nunca será.
Em relação a como o gênero se complementa ou faz uma intersecção com a raça e traz a experiência, a experimentação e a inovação nesses filmes, trazer filmes, ou que centralize a questão de gênero, ou que tenha sido dirigido por mulheres, não é um ato de benevolência. Pelo contrário, é um ato de atenção curatorial, porque qualquer pesquisa curatorial minimamente séria e atenciosa para filmes negros feitos nos últimos 10 anos vai perceber o quão indissociável é, não só a realização de mulheres, mas a questão de gênero. E eu acho muito criativa a forma que os filmes que estão presentes na mostra são filmes que não se escondem, de novo, de olhar para as comunidades negras em todos os seus matizes, o matiz de classe, o matiz de sexualidade, o matiz de gênero. Essa é justamente sua potência.

Agência Brasil: Se formos indicar um filme para introduzir este tema, entre os escolhidos na mostra, principalmente para jovens que estejam começando a lidar com o tema de raça, qual você recomenda e por qual motivo?
Heitor Augusto: Um filme que eu recomendaria que tem a questão de gênero, especialmente para quem está começando a lidar com questões raciais, é o Rito de Beleza. E destacaria ele por algumas razões.
Primeiro, porque é um filme que endereça questões e traumas intergeracionais. Se a gente for falar sobre as violências do racismo, a gente precisa, sim, falar sobre traumas intergeracionais, a gente precisa, sim, falar e questionar e debater e refletir sobre as estratégias de sobrevivência que foram empregadas por gerações anteriores e o quanto dessas estratégias  nos competem hoje.
Mas também destacaria porque é um filme feito por duas diretoras mulheres, mas não só, é um filme que endereça mulheres em relação às mulheres. Então, no caso ali, mães e avós em relação às suas filhas, filhas em relação às suas mães e suas avós.
E terceiro, porque o filme faz toda essa discussão trabalhando com um signo que é muito importante e tem sido muito relevante para o imaginário das lutas antirracistas contemporâneas no Brasil, que é a questão da autoaceitação, sendo o cabelo o elemento mais visual dessa jornada de autoaceitação. Então, eu chamaria a atenção para esse filme, para quem tivesse sendo introduzido nas pautas raciais e se interessa pelas intersecções de gênero nas pautas raciais dentro dos filmes da Mostra.

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